O Caso Benício e a Necropsia de um Sistema Falho Uma Investigação Jornalística Sobre a Segurança do Paciente no Brasil

O Caso Benício e a Necropsia de um Sistema Falho: Uma Investigação Jornalística Sobre a Segurança do Paciente no Brasil

Quando uma tragédia acontece entre paredes hospitalares, quase sempre surgem versões oficiais prontas, explicações apressadas e tentativas de reduzir o evento a uma única culpa individual. Mas, na madrugada em que Benício Xavier de Freitas caminhou pelo Hospital Santa Júlia com um quadro clínico simples — e saiu de lá sem vida —, tornou-se evidente que o que se rompeu não foi apenas um protocolo, mas a própria confiança de uma sociedade em seu sistema de saúde.

Este relatório foi produzido por Raimundo Renato da Silva Neto, enfermeiro e especialista em Jornalismo Investigativo e Jornalismo Digital pela UNINTER, unindo duas lentes fundamentais: a compreensão técnica de quem conhece a rotina assistencial e a precisão metodológica de quem apura, confronta e questiona narrativas oficiais. Essa dupla formação permite analisar a morte de Benício não como um episódio isolado, mas como sintoma de um problema muito maior: a falência estrutural das barreiras de segurança do paciente no Brasil.

O caso, ocorrido na madrugada de 24 de novembro de 2025, expôs vulnerabilidades profundas: uma prescrição médica tecnicamente incoerente, a submissão hierárquica de profissionais da enfermagem, a ausência de barreiras tecnológicas que prevenissem doses letais de medicamentos de alta vigilância e uma organização institucional incapaz de ouvir a própria família do paciente. O erro que matou Benício não nasceu naquele momento — ele foi cultivado dia após dia, plantão após plantão, em um sistema que tolera improviso, silencia dúvidas e apenas reage quando a tragédia já está consumada.

Nesta investigação, não busco atribuir uma culpa simplista. Como jornalista especializado em saúde, minha responsabilidade é ir além do visível e reconstruir o encadeamento de falhas que permitiu que uma criança, viva e estável, recebesse uma dose endovenosa maciça de adrenalina, incompatível com qualquer diretriz pediátrica. A morte de Benício só se tornou possível porque todas as barreiras que deveriam protegê-lo estavam ausentes, fragilizadas ou ignoradas.

Ao analisar prontuários, depoimentos, diretrizes da Anvisa, recomendações do ISMP, evidências farmacológicas e estudos de fatores humanos, esta reportagem revela aquilo que muitos preferem não admitir: Benício não foi vítima apenas de um erro; foi vítima de um sistema inteiro, que falha em silêncio até que um caso como este o exponha ao país inteiro.

Esta introdução marca o início de uma investigação aprofundada, que revisita cada detalhe, cada decisão e cada ausência decisiva naquela madrugada. O objetivo não é punir indivíduos, mas responsabilizar estruturas. Não é inflamar indignação, mas provocar mudanças.
Esse é o compromisso deste trabalho jornalístico — e o legado que a memória de Benício exige.

1. O Silêncio Ensurdecedor de uma Sala de Emergência

A segurança do paciente é, teoricamente, o alicerce sobre o qual se constrói toda a prática da medicina moderna. O juramento hipocrático, Primum non nocere (“primeiro, não causar dano”), ecoa através dos milênios como um mandamento inviolável. No entanto, na madrugada de 24 de novembro de 2025, no Hospital Santa Júlia, em Manaus, esse pilar fundamental ruiu, soterrando a vida de Benício Xavier de Freitas, uma criança de apenas seis anos. O que deveria ser um atendimento rotineiro para um quadro de laringite transformou-se em um cenário de horror farmacológico, culminando em uma sequência devastadora de seis paradas cardíacas e o óbito de um paciente previamente saudável.

Este relatório não se propõe apenas a narrar a cronologia de uma tragédia anunciada, mas a realizar uma autópsia profunda e sistêmica das falhas que permitiram que tal evento ocorresse. Como jornalista especializado em saúde, é imperativo transcender a narrativa simplista da “culpa individual” que frequentemente domina as manchetes policiais e penetrar nas camadas complexas da gestão de risco, da farmacologia clínica, da psicologia cognitiva e da cultura organizacional das instituições de saúde brasileiras. A morte de Benício não é um ponto fora da curva; é um sintoma agudo de uma patologia crônica que aflige hospitais públicos e privados em todo o território nacional: a incapacidade de implementar barreiras de segurança efetivas contra o erro humano.

A investigação revela que o incidente em Manaus é o resultado de uma tempestade perfeita, onde a falha na prescrição médica colidiu com a ausência de revisão farmacêutica, a submissão hierárquica da enfermagem e a surdez institucional diante dos alertas da família. Ao analisarmos este caso sob a ótica da Engenharia de Fatores Humanos e das diretrizes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Instituto para Práticas Seguras no Uso de Medicamentos (ISMP), torna-se evidente que o sistema de saúde brasileiro, apesar de possuir normativas robustas no papel, opera frequentemente em uma zona de risco inaceitável na prática clínica diária.


2. A Cronologia do Colapso: Reconstruindo a Noite Fatídica

Para compreender a magnitude do erro, é necessário dissecar os eventos que transcorreram entre a noite de sábado, 23 de novembro, e a madrugada de domingo, 24 de novembro de 2025. Benício Xavier de Freitas deu entrada no pronto-atendimento do Hospital Santa Júlia apresentando tosse seca e sintomas compatíveis com laringite ou faringite, quadros comuns na pediatria que envolvem a inflamação da laringe e podem causar desconforto respiratório.

O atendimento inicial seguiu o fluxo padrão de triagem e avaliação médica. A médica plantonista, identificada nas investigações como Juliana Brasil dos Santos, prescreveu um regime terapêutico que incluía lavagem nasal, soro, xarope e adrenalina. É neste ponto que a trajetória do cuidado se bifurca em direção ao abismo. A prescrição médica, documento legal e diretriz técnica suprema naquele momento, ordenou a administração de “três doses de adrenalina intravenosa, 3 ml a cada 30 minutos“.

A família, atenta ao histórico de saúde da criança, percebeu a anomalia. O pai de Benício, Bruno Freitas, relatou ter questionado a técnica de enfermagem responsável pela administração. O diálogo, reconstruído a partir dos depoimentos, revela a fragilidade crítica das barreiras de segurança: o pai alertou que o filho sempre recebia adrenalina por nebulização (inalação) e nunca pela veia. A profissional de enfermagem, por sua vez, admitiu nunca ter realizado aquele procedimento por via intravenosa, mas justificou sua ação com uma frase que resume a perigosa cultura de obediência cega em hospitais: “Falou que estava na prescrição e que ela ia fazer“.

A administração da primeira dose de 3 ml de adrenalina endovenosa foi o evento gatilho. A reação fisiológica foi imediata e catastrófica. A criança, que entrou caminhando e conversando, colapsou. A oxigenação despencou para 75%, e o quadro evoluiu para uma instabilidade hemodinâmica severa. A equipe médica tentou reverter o quadro, transferindo Benício para a “sala vermelha” e posteriormente solicitando vaga na UTI, mas o dano miocárdico e sistêmico causado pela superdosagem de uma catecolamina potente foi irreversível. Após seis paradas cardíacas, o óbito foi confirmado, deixando uma família destroçada e uma sociedade perplexa.

A admissão do erro veio de forma digital e desesperada. Prints de mensagens trocadas pela médica plantonista com a direção do hospital revelam o reconhecimento da falha cognitiva: “O paciente desmaiou. Pelo amor de Deus. Eu errei a prescrição. Prescrevi inalação com adrenalina e acabaram fazendo ‘ev’ (endovenosa)“. Esta confissão espontânea, embora tardia, é a peça-chave para entendermos que o caso não se trata de dolo direto (vontade de matar), mas de um erro de slip (deslize) na escrita ou seleção eletrônica, agravado por uma cadeia de falhas na checagem.


3. A Farmacologia do Erro: Adrenalina como Arma Letal

A adrenalina (epinefrina) é uma substância endógena essencial para a sobrevivência humana, mediando a resposta de “luta ou fuga”. No entanto, quando utilizada como fármaco exógeno, ela se torna uma “faca de dois gumes” extremamente afiada. O ISMP Brasil e a Anvisa classificam a adrenalina como um Medicamento de Alta Vigilância (MAV) ou Medicamento Potencialmente Perigoso (MPP), uma categoria reservada para drogas que possuem um risco aumentado de provocar danos significativos aos pacientes em decorrência de falhas no processo de utilização.

3.1. Vias de Administração e Farmacocinética Divergente

A compreensão do erro exige uma análise técnica da diferença abissal entre a via inalatória e a via endovenosa para este fármaco.

Quando administrada por nebulização (inalação), a adrenalina atua topicamente nos receptores alfa-adrenérgicos da mucosa do trato respiratório superior. O efeito desejado é a vasoconstrição local, que reduz o edema da glote e melhora a passagem de ar em casos de crupe viral ou laringite. A absorção sistêmica é mínima e lenta, tornando o procedimento seguro mesmo em doses de 3 a 5 ml (solução 1:1000).

Por outro lado, a administração endovenosa (EV) lança a droga diretamente na circulação central, com biodisponibilidade de 100% e início de ação imediato (segundos). Na corrente sanguínea, a adrenalina atua potentemente em receptores alfa e beta-adrenérgicos em todo o corpo. Os efeitos incluem vasoconstrição periférica intensa (aumentando brutalmente a pressão arterial), aumento da frequência cardíaca (cronotropismo positivo) e aumento da força de contração do coração (inotropismo positivo).

3.2. A Matemática da Superdosagem

O erro de dosagem no caso Benício foi monumental. Em pediatria, a dose de adrenalina para ressuscitação cardiopulmonar (o cenário mais extremo de uso EV) é de 0,01 mg/kg. Assumindo que uma criança de 6 anos pese aproximadamente 20 kg a 22 kg, a dose correta para uma parada cardíaca seria de aproximadamente 0,2 mg.

A prescrição realizada foi de “3 ml“. A apresentação padrão da adrenalina hospitalar é em ampolas de 1 ml com concentração de 1 mg/ml (1:1000). Portanto, 3 ml correspondem a 3 mg da droga.

Isso significa que Benício recebeu uma dose 15 vezes superior à dose indicada para ressuscitar uma criança morta, estando ele vivo e com o coração batendo. Isso foi grave.

A tabela abaixo ilustra a disparidade entre a terapêutica correta e o erro fatal cometido:

ParâmetroIndicação: Laringite (Correto)Indicação: Parada Cardíaca (Correto)O Que Foi Administrado (Erro Fatal)
ViaInalatória (Nebulização)Endovenosa (IV)Endovenosa (IV)
Dose3 a 5 ml (3-5 mg)0,01 mg/kg (aprox. 0,2 mg)3 ml (3 mg)
Efeito EsperadoDesinchar laringe (Local)Reiniciar coração (Sistêmico)Tempestade Adrenérgica
ConsequênciaAlívio respiratórioRetorno da circulação espontâneaIsquemia, Arritmia Letal, Óbito

A administração dessa carga massiva de catecolaminas em um sistema cardiovascular íntegro provoca uma crise hipertensiva fulminante, hemorragia intracraniana, edema pulmonar agudo e arritmias ventriculares malignas (fibrilação ventricular), levando à exaustão miocárdica e morte, exatamente como descrito na evolução clínica de Benício.


4. O Modelo do Queijo Suíço e as Falhas Sistêmicas

A teoria de James Reason sobre o erro humano, conhecida como o Modelo do Queijo Suíço, postula que acidentes graves não ocorrem por uma única falha, mas pelo alinhamento de múltiplos “buracos” nas barreiras de defesa do sistema. No caso do Hospital Santa Júlia, todas as barreiras de segurança falharam simultaneamente.

4.1. O Erro de Prescrição (Falha Cognitiva e Tecnológica)

A médica admitiu o erro de prescrição. Na ergonomia cognitiva, isso pode ser classificado como um slip de ação — a intenção era correta (tratar a laringite), mas a execução motora (escrever ou digitar) foi errada.4

Entretanto, devemos questionar o sistema de prescrição. Se eletrônico, o software permitiu a seleção de uma dose letal de um medicamento de alta vigilância sem emitir um alerta impeditivo (hard stop). Sistemas de prescrição seguros possuem algoritmos que bloqueiam doses absurdas ou vias incompatíveis com o diagnóstico. Se a prescrição foi manual, a ilegibilidade ou a pressa podem ter contribuído, mas a responsabilidade recai sobre a falta de informatização segura.

4.2. A Ausência da Farmácia Clínica (Falha de Dispensação)

A farmácia hospitalar não é um mero almoxarifado. O farmacêutico é a segunda barreira crítica. Ao receber um pedido de “3 ampolas de adrenalina” para um paciente pediátrico em uma unidade de observação (não UTI/Sala Vermelha), associado a um kit de nebulização ou soro, o farmacêutico deveria ter realizado a análise técnica da prescrição.

A liberação do medicamento sem questionamento sobre a via de administração ou a indicação clínica evidencia a inexistência ou a falência da farmácia clínica na instituição durante o plantão de fim de semana. O medicamento chegou às mãos da enfermagem sem a etiqueta de alerta ou a conferência de segurança.

4.3. A Obediência Cega da Enfermagem (Falha de Administração)

A enfermagem é a última barreira antes que o medicamento toque o paciente. O Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem (Resolução Cofen 564/2017) é explícito em seu Artigo 37: é direito e dever do profissional recusar-se a executar prescrição medicamentosa que não esteja clara ou que possa causar dano.

No entanto, a técnica de enfermagem, mesmo diante da dúvida e do questionamento do pai, optou pela execução. Isso denota um profundo problema cultural conhecido como “Gradiente de Autoridade“. Em ambientes onde a figura do médico é inquestionável, a equipe de enfermagem tende a suprimir seu julgamento crítico por medo de retaliação ou por uma formação que prioriza a execução de tarefas em detrimento do pensamento crítico.

4.4. O Descaso com o Paciente e Família (Falha de Engajamento)

A barreira final, e talvez a mais dolorosa de ser ignorada, foi a própria família. O pai atuou como um safety advocate (defensor da segurança) ao questionar a via de administração. A resposta da equipe técnica, ignorando o alerta de quem conhecia o histórico do paciente, reflete a arrogância institucional que desumaniza o cuidado e desconsidera o paciente como parceiro na sua própria segurança.


5. O Cenário Brasileiro de Segurança do Paciente: Dados e Realidade

O caso de Benício não é um evento isolado, mas parte de uma epidemia oculta de erros médicos no Brasil. Dados alarmantes compilados pela Organização Nacional de Acreditação (ONA), baseados em notificações à Anvisa, revelam a extensão do problema.

Entre agosto de 2023 e julho de 2024, o sistema de saúde brasileiro (público e privado) registrou 396.629 falhas relacionadas à assistência. Destes incidentes, 2.363 resultaram em óbitos diretos. É crucial notar que esses números representam apenas a “ponta do iceberg“, visto que a subnotificação é endêmica no país, impulsionada pelo medo da punição.

5.1. Estatísticas de Erros de Medicação

Os erros de medicação constituem uma das causas mais frequentes de eventos adversos graves. Em pediatria, o cenário é ainda mais crítico. Estudos nacionais apontam que a população pediátrica é até três vezes mais vulnerável a erros de medicação do que a população adulta. Isso ocorre devido a fatores como:

  • Necessidade de cálculos de dose baseados em peso (mg/kg) ou superfície corporal.
  • Falta de apresentações farmacêuticas pediátricas (necessidade de diluição de ampolas de adulto).
  • Imaturidade fisiológica dos órgãos responsáveis pela metabolização e excreção de drogas.

Um estudo realizado em hospital pediátrico de Porto Alegre identificou que os erros de dose são os mais prevalentes, com sobredosagens representando mais de 70% das notificações em determinados anos. O caso de Manaus encaixa-se perfeitamente nessa estatística macabra.

A tabela a seguir apresenta a distribuição dos tipos de incidentes mais notificados no Brasil, contextualizando o erro de medicação:

Tipo de IncidenteFrequência RelativaImpacto PotencialExemplo Típico
Falhas na Administração de MedicamentosAltaGrave/FatalTroca de via, dose incorreta, paciente errado.
Lesão por PressãoAltaModerado/GraveÚlceras em pacientes acamados sem mudança de decúbito.
Falhas de Identificação do PacienteMédiaGraveTroca de exames, administração de sangue em paciente errado.
Cirurgia em Local ErradoBaixaGraveOperar o membro sadio.
QuedasAltaModeradoQueda do leito ou no banho.

Fonte: Dados adaptados de relatórios da ONA e Anvisa.


6. A Resposta Institucional e Legal: Justiça ou Vingança?

A reação ao caso Benício seguiu o roteiro tradicional de busca por culpados, em vez de busca por causas. A Polícia Civil do Amazonas agiu com celeridade, indiciando a médica e solicitando sua prisão preventiva sob a alegação de homicídio doloso (dolo eventual), argumentando que, ao prescrever de forma errada, ela “assumiu o risco” de matar.

6.1. O Dilema da Criminalização

A criminalização do erro médico é um tema controverso na segurança do paciente. Especialistas e entidades como a Sociedade Brasileira para a Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente (Sobrasp) defendem a adoção de uma “Cultura Justa” (Just Culture). Segundo essa filosofia, deve-se distinguir entre:

  1. Erro Humano (Human Error): Uma falha não intencional, um deslize, um lapso de memória ou atenção. A resposta deve ser o consolo ao profissional e a correção dos processos do sistema. O caso da médica, ao escrever EV em vez de Inalação, enquadra-se tipicamente aqui.
  2. Comportamento de Risco (At-Risk Behavior): Uma escolha insegura onde o risco não é reconhecido ou é justificado (ex: não fazer a dupla checagem por pressa). A resposta deve ser educativa.
  3. Comportamento Temerário (Reckless Behavior): Ação consciente de desconsiderar um risco substancial e injustificável (ex: trabalhar embriagado). A resposta deve ser punitiva.

Ao tratar um erro de prescrição (provável slip cognitivo) como homicídio doloso, o sistema judiciário pode satisfazer o desejo de vingança social, mas presta um desserviço à segurança futura. A prisão de um médico por erro não intencional cria um clima de terror, onde profissionais esconderão seus erros futuros para evitar a cadeia, impedindo que o sistema aprenda e evolua.

6.2. A Responsabilidade do Hospital Santa Júlia

O Hospital Santa Júlia não pode ser eximido de responsabilidade. O histórico da instituição revela problemas anteriores com licenças sanitárias e ações civis públicas movidas pelo Ministério Público do Amazonas. A responsabilidade civil objetiva do hospital é clara: a falha ocorreu dentro de suas instalações, por seus prepostos, utilizando seus insumos.

A instituição falhou em prover um ambiente seguro. Onde estavam os protocolos de dupla checagem? Onde estava o sistema de suporte à decisão clínica? Onde estava a supervisão da farmácia? Afastar os profissionais envolvidos é uma medida administrativa padrão, mas não resolve as falhas latentes que permitiram que o erro atravessasse todas as barreiras.


7. Análise de Fatores Humanos: Por Que Erramos?

A Engenharia de Fatores Humanos estuda como as pessoas interagem com sistemas e tecnologias. No caso Benício, a interface de prescrição (seja papel ou tela) foi mal projetada para a segurança.

O cérebro humano, sob estresse, fadiga ou em modo automático, tende a completar padrões. Se a médica está habituada a prescrever medicações EV em emergências, o “piloto automático” pode ter inserido “EV” ao prescrever a adrenalina. Um sistema resiliente deve prever essa falibilidade humana.

Além disso, o design das ampolas e seringas contribui para o erro. O dispositivo Luer Lock (conexão de seringas) é universal. A mesma seringa que aspira a adrenalina para colocar no nebulizador é a que conecta no acesso venoso da criança. Essa intercambiabilidade física é uma falha de design global que permite a administração de dietas, soluções orais e inalatórias na veia. A ISO 80369-3 introduziu conectores enterais específicos (ENFit) para evitar isso em dietas, mas para medicamentos injetáveis que também são inalados, o risco persiste.


8. Protocolos de Segurança: O Que Deveria Ter Acontecido?

Se o Hospital Santa Júlia tivesse implementado rigorosamente os protocolos de segurança preconizados pela Anvisa (RDC 36/2013) e pela Sobrasp, a morte de Benício teria sido evitada em múltiplos pontos.

8.1. A Dupla Checagem Independente

Para Medicamentos de Alta Vigilância (MAV) como a adrenalina, a “Dupla Checagem” é mandatória. Isso significa que dois profissionais de enfermagem devem conferir, de forma independente e simultânea:

  1. Paciente Certo.
  2. Medicamento Certo.
  3. Dose Certa.
  4. Via Certa.
  5. Hora Certa.
  6. Registro Certo.
  7. Ação Certa.
  8. Forma Certa.
  9. Resposta Certa.

Se a técnica tivesse chamado uma colega para conferir a dose de 3 ampolas de adrenalina EV para uma laringite, a segunda profissional, com um olhar fresco, muito provavelmente teria identificado o absurdo da conduta.

8.2. Engajamento do Paciente

A campanha “Medicação sem Danos” da OMS enfatiza o papel do paciente. Quando o pai questionou, o procedimento deveria ter sido imediatamente interrompido (“Stop the Line“). A dúvida da família deve ser tratada como um evento de segurança, exigindo nova conferência com o prescritor. A cultura de ignorar o leigo, porém, prevaleceu.


O Legado de Benício

A morte de Benício Xavier não pode ser em vão. Ela deve servir como um marco para a reformulação das práticas de segurança em pediatria no Brasil. A análise detalhada deste caso aponta para a necessidade urgente de medidas concretas, que vão além da punição individual:

  1. Tecnologia como Barreira: Implementação obrigatória de sistemas de prescrição eletrônica com suporte à decisão clínica (CDSS) que emitam alertas bloqueantes para doses máximas e vias de administração atípicas em pediatria.
  2. Farmácia Clínica Atuante: Presença obrigatória de farmacêuticos clínicos nas unidades de internação e emergência para validação de prescrições de alto risco antes da dispensação.
  3. Empoderamento da Enfermagem: Fortalecimento ético e profissional da enfermagem para questionar prescrições médicas duvidosas sem temor de represálias hierárquicas.
  4. Cultura Justa: Substituição da cultura punitiva pela cultura de aprendizado. As instituições devem incentivar a notificação de quase-erros (near misses) para corrigir falhas antes que causem danos.
  5. Escuta Ativa da Família: Institucionalização do respeito à voz do paciente e familiar como barreira de segurança legítima e vital.

O sistema de saúde brasileiro falhou com Benício. A prescrição errou a tinta, a farmácia errou a entrega, a enfermagem errou a via e o hospital errou na escuta. Que a memória desta criança impulsione a construção de um sistema onde a segurança não seja apenas um protocolo no papel, mas uma prática viva e inegociável em cada leito de hospital.


Nota do Autor: Este relatório foi elaborado com base em informações públicas, diretrizes técnicas e literatura científica disponível até novembro de 2025. As referências citadas no texto correspondem aos documentos analisados durante a investigação.

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