Hospital Santa Júlia e o caso Benício

Hospital Santa Júlia e o caso Benício

Por trás da tragédia do caso Benício, um histórico de embates com o Ministério Público e a Vigilância Sanitária revela que a segurança do paciente pode estar comprometida por falhas de gestão.

Enquanto a Polícia Civil e a opinião pública focam no erro individual da equipe médica que administrou adrenalina endovenosa no menino Benício Xavier, de 6 anos, uma análise mais profunda dos registros jurídicos do Hospital Santa Júlia traz à tona um cenário de irregularidades administrativas persistentes. A instituição, uma das mais tradicionais de Manaus, enfrenta ações que questionam desde a validade de suas licenças de funcionamento até a qualidade da prestação de serviço ao consumidor.

1. Operação sem Licença Sanitária e Descumprimento de Acordos

O ponto mais crítico do histórico recente do hospital é a contenda judicial envolvendo sua regularidade sanitária. Em junho de 2025, o Ministério Público do Amazonas (MPAM), por meio da 52ª Promotoria de Justiça Especializada na Proteção e Defesa do Consumidor (Prodecon), ajuizou uma ação de execução contra o hospital. O motivo: a unidade estaria operando sem a licença sanitária obrigatória, descumprindo um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado em 2022.

Segundo o MPAM, o hospital assinou o acordo comprometendo-se a sanar irregularidades apontadas pela Vigilância Sanitária de Manaus (Visa Manaus) em um prazo de oito meses. No entanto, investigações apontaram que, passados mais de dois anos, a instituição ainda operava sem o documento definitivo, acumulando pendências estruturais e processuais.

O promotor de Justiça Lincoln Alencar de Queiroz solicitou à Justiça a execução de multas que podem chegar a quase R$ 1 milhão pelo descumprimento das cláusulas pactuadas, argumentando que a falta de licenciamento coloca em risco a saúde coletiva e viola direitos básicos do consumidor.

2. Ação Civil Pública e Irregularidades Assistenciais

Além das questões sanitárias, o hospital é réu em uma Ação Civil Pública (Processo nº 0603493-13.2021.8.04.0001) que tramita na 17ª Vara Cível de Manaus. Esta ação originou-se de um inquérito civil instaurado para apurar denúncias de irregularidades no atendimento e na transferência de pacientes.

O procedimento investigatório, que ganhou força durante a crise sanitária, apurou falhas na regulação e no fluxo de atendimento, culminando na judicialização para forçar a adequação da unidade às normas técnicas de saúde e defesa do consumidor. O arquivamento do procedimento administrativo interno do MP se deu justamente porque a gravidade dos fatos exigiu a propositura da ação judicial, que segue em trâmite.

3. Falhas na Prestação de Serviço e Condenações Cíveis

O histórico do hospital no Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) também inclui condenações por falhas na prestação de serviços, que corroboram a tese de fragilidade nos processos internos.

Em decisão recente da Terceira Câmara Cível (Apelação nº 0671600-80.2019.8.04.0001), o Hospital Santa Júlia foi condenado solidariamente, junto a uma operadora de plano de saúde, a indenizar pacientes por demora excessiva e injustificada na autorização e realização de procedimentos cirúrgicos. Os magistrados entenderam que a burocracia institucional e a falta de eficiência administrativa geraram danos morais, configurando falha na prestação do serviço essencial de saúde.

A Responsabilidade Corporativa

A morte de Benício Xavier não ocorreu em um vácuo. Embora o erro de medicação (troca de via inalatória por endovenosa) seja o evento final catastrófico, ele acontece dentro de uma instituição que, segundo o Ministério Público, luta para manter suas licenças sanitárias em dia e cumpre acordos de conduta com dificuldade.

A jurisprudência brasileira e os protocolos de segurança do paciente estabelecem que a responsabilidade do hospital é objetiva. Isso significa que a instituição responde pelos danos causados dentro de suas dependências, independentemente de culpa direta da direção, pois é seu dever garantir um ambiente seguro, com profissionais capacitados, processos de dupla checagem ativos e regularidade sanitária impecável. O histórico de embates com a fiscalização pública sugere que as barreiras de segurança do Santa Júlia podem estar erodidas há muito mais tempo do que a tragédia atual revela.

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